Kingdom Hearts 3 para quem nunca jogou Kingdom Hearts: 5 conselhos

Dimas T. de Lorena Filho
13 min readNov 28, 2018

Há tempos que eu queria jogar Kingdom Hearts. Ouço falar da série de jogos desde que eu estava na faculdade e sou absolutamente apaixonado pelo universo Disney. A ideia de um jogo que visitava esse universo — incluindo as princesas e tudo o mais — mas também trazia personagens de Final Fantasy era praticamente um sonho. Junte-se isso ao fato de que a série se identifica como RPG (meu gênero favorito) e ainda é produzida pela Square Enix (minha produtora favorita) e voilà: eu precisava jogar. No entanto, não tinha console na época e, quando finalmente voltei a jogar com meu PS4, ela já era “peça de colecionador”. Até que, com os rumores de que um “terceiro” jogo estava a caminho (aspas explicadas adiante), começaram a surgir coletâneas e, finalmente, pude mergulhar de cabeça em Kingdom Hearts e me preparar para, já em janeiro, jogar o tão esperado “3”.

6 jogos, 2 filmes e mais de 100 horas depois (jogadas intensamente em pouco mais de 3 meses), aqui vai minha receita de como se preparar para o que vem por aí, especialmente para quem está entrando agora nesse mundo mágico:

1) Converse, leia, pesquisa, atualize-se

O enredo de Kingdom Hearts é complicado. Muito. A ponto de, muitas vezes, não fazer sentido. É difícil de entender como a Disney, tão adepta de roteiros clássicos e histórias simples de jornadas heroicas, tenha permitido que seus personagens fossem envolvidos numa trama tão rocambólica. Quem está acostumado a assistir animes, sabe bem como os japoneses tendem a contar histórias em forma de saga: é realidade paralela, é filler (episódios criados apenas para preencher tempo ou gerar lucro, mas que não dão andamento para a trama principal, muitas vezes inclusive ignorando-a e trazendo outros personagens e cenários), é gente de filler que surge na trama principal pressupondo que o espectador saiba a história pregressa, é gente da trama principal que vira filler sem mais nem menos, são 5 personagens que na verdade são um só, mas ao mesmo tempo não são.

Digerir isso tudo demanda mais do que jogar os jogos (são 9 até agora, embora 2 deles tenham, por sorte, sido convertido em filmes) e saber a história. É preciso ler os tais “secret reports” e “journals” espalhados pelo jogo, espécie de páginas de diário e descrições de personagens-chave que permitem compreender detalhes “de bastidores” para a trama.

É preciso conversar com quem também jogou e ver se a interpretação deles bate com a sua. E se não bater, discutirem o motivo.

É preciso atualizar-se em fóruns e saber o que está rolando em Kingdom Hearts: Union χ , um jogo que ainda está em curso e que tem certos impactos sobre a linha do tempo atual da franquia… Enfim, tem que mastigar bastante pra conseguir engolir tudo sem ter uma indigestão. Dá trabalho e ele nem sempre é bem vindo, vamos combinar.

Capa de Kingdom Hearts 3: todos os 13 personagens mostrados são protagonistas ou fundamentais para a história do jogo.

Se isso parece um pouco too much pra você, fique tranquilo: é mesmo, assim como pra todo mundo. Testuya Nomura, o desenvolvedor por trás da saga Kingdom Hearts, é obcecado por espalhar a franquia pelo máximo de plataformas possíveis e ao longo de linhas do tempo múltiplas e sobrepostas. É algo que ele também explora em Final Fantasy, seu maior sucesso, e que faz parte do imaginário pop japonês. Portanto, se divertir com Kingdom Hearts significa estar pronto para encarar o fato de que a lógica não é um dos pilares no qual a narrativa se sustenta. Pelo menos, não a lógica da trama. A recompensa, assim como nos animes, é que a história segue fascinante e com uma infinidade de momentos mágicos e profundamente inspirados sobre os temas que trata: amizade, memória afetiva, infância, “crescer” e o equilíbrio entre o bem e o mal em tudo que existe. É de jogar chorando, literalmente. Mas o preço que Nomura decide cobrar por isso é a aceitação de seus delírios e o excesso que chega ao nonsense, forçando o jogador a “fazer a lição de casa” se não quiser virar a Natasha Caldeirão tentando entender “o que é que tá acontecendo”. Especialmente agora, com o 3, que chega depois de toda essa bagagem e, com certeza, vai deixa-la ainda mais pesada. É pegar ou largar.

2) Abra os ouvidos e o coração

Em vários anos de video game, poucas vezes vi uma trilha sonora tão marcante e importante para o jogo como a de Kingdom Hearts. Yoko Shimomura (que também compôs a trilha original de vários Final Fantasy) faz um trabalho magistral ao compor temas que permeiam todos os jogos e tramas da franquia e (o que dado o tópico 1, parece ser uma conquista extraordinária) ajudam-nos inclusive a compreendê-los. Algumas das peças, como “The Other Promise”, tema de um personagem, são de uma profundidade e beleza ímpares, comparáveis às melhores trilhas de cinema. Mais surpreendente ainda é quando o jogo usa esse mesmo tema em contraponto ou com leves variações de ritmo ou arranjo para indicar relações ou conexões com aquele personagem, ainda que ele não esteja em cena. Isso ocorre o tempo todo e com uma fluidez que impressiona e emociona de forma legítima.

As canções originais, já famosas entre fãs não apenas da série, mas também de cultura pop japonesa em geral, acabam extrapolando o universo do jogo. Cantadas pela popstar nipônica Utada Hikaru, os temas da série (“Simple and Clean” e “Sanctuary”) não ficam devendo em nada para as canções que embalam nossos filmes e séries prediletos, inclusive nos fazendo lembrar dos momentos que mais nos emocionam. E claro, sua melodia também aparece na trilha orquestrada em diversos momentos-chave da franquia, tornando a experiência ainda mais fantástica.

A trilha sonora da série é vendida pelo site oficial da produtora do jogo e tem preço de artigo raro para colecionadores.

E claro, as trilhas da Disney não foram esquecidas. Detalhes de nossos musicais preferidos estão lá, em seus respectivos mundos, para que a gente, literalmente, cante e dance junto, como o jogo pede às vezes. Em determinados momentos, a vontade é parar de jogar apenas para ouvir um pouco da música da Fada Madrinha da Cinderela ou da Pequena Sereia, por exemplo. Então, mantenha ouvidos e coração abertos.

Espere caminhar por cenários de inspiração medieval ouvindo tímpanos, címbalos e flautas ou batalhas épicas ao som de um adagio para piano e cordas.

3) Prepare sua paciência e seus dedos. Você vai precisar deles

Quando você pensa em um jogo cujos personagens principais incluem Mickey, Pateta e Donald, que fala sobre temas como amizade e memória afetiva e com um visual extremamente colorido e divertido, você imagina que terá uma experiência leve e gratificante, certo? Pense de novo…

Kingdom Hearts é um dos jogos mais difíceis que já joguei. E os picos de dificuldade não têm aviso ou justificativa: se deu na cabeça do desenvolvedor ou roteirista, ele simplesmente enfia um chefe quase impossível de derrotar no meio da história. E quando falo em “quase impossível”, quero dizer que qualquer golpe dele, num determinado momento, pode te matar, o que te obrigará a ficar na defensiva por vários minutos até poder desferir um ataque. Que esse ataque deverá ser curto e mínimo, às vezes sequer um combo, ou isso resultará em outra exposição e um contra-ataque inimigo que provavelmente te matará também. Que alguns ataques — também letais — não são defensáveis e você precisa correr loucamente pela tela enquanto reza para não ser atingido. Que eles costumam adquirir novos poderes, ainda mais fortes, na medida em que estão perto de serem derrotados. E que, no caso dos primeiros jogos da série, o gameplay não envelheceu bem e faz com que a câmera ou as mecânicas de combate te joguem exatamente para onde você não quer ir — e acabe, adivinhe, morrendo. Morrer, vale lembrar, na maioria das vezes, significa retornar alguns minutos atrás no jogo, o que também te faz perder tempo, caminhar, fugir de inimigos menores, abrir portas, até chegar ao ponto em que estava. Tudo isso junto gera uma experiência capaz de fazer até um monge budista espumar de raiva e frustração.

É como se o jogo quisesse punir o jogador mais ofensivo ou que gosta de explorar, que toma riscos, ainda que bem calculados.

Depois de muitas derrotas, conversas com amigos (item 1) e exploração do gameplay, você acaba descobrindo paliativos que tornam esse martírio um pouco mais tolerável: habilidades que evitam sua morte imediata, magias de defesa e cura e uso de alguns itens, por exemplo, são essenciais para o sucesso. Mas nenhuma garantia de que funcionarão: uma das coisas mais irritantes em Kingdom Hearts 1, por exemplo, é que, para se curar magicamente, há uma animação. E muitas vezes o golpe inimigo é mais rápido do que ela, ou seja, mesmo fazendo a coisa certa, se você não der a sorte de fazê-la com tempo disponível, não adiantará nada. E isso tudo sem contar que para desenvolver essas habilidades e comprar esses itens é necessário gastar várias horas de jogo “upando” personagens e magias ou procurando por itens. Algo que você não vai ter a mínima vontade de fazer quando está frente ao que parece ser o momento final da trama.

Quando essa sequência acontecer, trema: uma das piores, mais frustrantes e mais irritantes lutas da história dos video games estará prestes a acontecer.

Parece. Porque se tem algo que Kingdom Hearts herdou de Final Fantasy — e ainda elevou alguns níveis — é o tal do boss rush, ou seja, em momentos decisivos do jogo, especialmente mais próximo ao fim, você enfrentará uma sucessão interminável de inimigos como esse que acabei de descrever, sem chance de salvar, voltar atrás ou evoluir a trama. Em Kingdom Hearts 1, pior da série no aspecto dificuldade, contei 12 (isso mesmo, doze) chefes em determinado momento. Morreu no décimo? Volta pro primeiro. Matou 11? Nada acontece. Feijoada.

Além da frustração causada pela interrupção brusca de uma experiência fluida e envolvente, essas batalhas não conversam, em nada, com a narrativa do jogo. Este é, na minha opinião, o ponto mais problemático da série e, notavelmente, algo no qual os desenvolvedores têm tentado trabalhar. Kingdom Hearts 2 é, pra mim, a melhor tentativa nesse sentido: a dificuldade é equilibrada e progressiva e, mesmo nas partes mais irritantes, é possível aplicar diferentes estratégias (ofensivas ou defensivas, por exemplo) nas batalhas, com iguais chances de sucesso. Porém não foi uma lição absolutamente aprendida: Kingdom Hearts: Birth by Sleep, lançado posteriormente ao 2, embora seja um dos jogos mais interessantes da franquia, traz de volta batalhas infernais, de 23 minutos nos quais é preciso ficar se defendendo por pelo menos 20. E embora esse jogo traga algumas benvindas novidades para o gampelay de combate (a construção de decks de magias e habilidades que podem ser evoluídos, combinados e preparados para cada batalha), a exigência de algumas habilidades para a vitória em alguns pontos sem que a trama o indique ou mesmo que haja qualquer explicação narrativa sobre como utilizar esse sistema da maneira correta (você descobre como tudo funciona ao navegar pelos menus, caso se tenha essa curiosidade. Apenas nesse caso, o jogo exibe instruções textuais en passant e só) é mais um indício do que já foi apontado : um total descompasso entre a narrativa e o gameplay.

Um jogo eletrônico é uma mídia única e riquíssima. Explorar ao máximo sua potencialidade, ou seja, fazer um jogo realmente excepcional, significa prover com ele uma experiência que apenas essa mídia seria capaz de trazer. Portanto, não se trata apenas de contar uma excelente história audiovisualmente (algo de que cinema e TV já dão conta) nem de apenas divertir o jogador por meio de um sistema de regras, punição e recompensa (que os jogos de cartas e tabuleiros fazem há séculos). Trata-se, isso sim, de unir essas duas vertentes, construindo uma narrativa que é engrandecida e transposta para a interatividade e a agência possibilitada por um sistema de regras, punições e recompensas. A proporcionalidade entre esses polos e fazer com que ambos sejam causa e consequência um do outro é o que constrói grandes obras primas dos games, especialmente nos dias de hoje, quando as possibilidades tecnológicas permitem quase tudo o que formos capazes de imaginar.

Kingdom Hearts, no entanto, perde um pouco esse bonde: se por um lado sua narrativa e seus personagens são maravilhosos o bastante para nos manter jogando mesmo diante de uma experiência extremamente desagradável, por outro sentimos um alívio extremo quando descobrimos que um dos jogos foi convertido em filme e não será preciso passar por uma via sacra para saber qual o próximo detalhe da história. A exceção, louvável, é Kingdom Hearts 2, que atinge um interesssante equilíbrio entre esses pontos e faz torcer para que o 3, ao incorporar mecânicas como as de Birth by Sleep, não se torne outra provação.

Um outro detalhe interessante: a série se denomina um action RPG, mas é muito mais action do que RPG. Trata-se a bem dizer, de um hack ans slash com estrutura de níveis, magia e equipamentos para evolução dos personagens. A decisão provavelmente foi tomada para tornar o jogo mais palatável ao público ocidental, não tão receptivo às batalhas por turno. Porém, ao temperar essas batalhas em tempo real com o “jeito de jogar” japonês, o que ocorre é o inverso: parece o tipo de jogo que só aquelas crianças japonesas criadas em fliperama e apertando vários botões ao mesmo tempo serão capazes de vencer. Fã de RPG que sou, preferia mil vezes batalhas por turno, que testassem meu raciocínio e estratégia em vez da minha capacidade psicomotora. A ideia é me divertir, não tirar carteira de habilitação.

Portanto, prepare-se: embora às vezes valha a pena, sua paciência será explorada a extremos que talvez só Dark Souls tenham chegado e seus dedos e mãos vão doer pela velocidade e quantidade de vezes que você terá que apertar os botões.

4) Deixe seus olhos navegarem por cada detalhe

A direção de arte de Kingdom Hearts mistura o imaginário japonês dos animes e dos games com os universos Disney que conhecemos e amamos. E o resultado é de uma minúcia e um cuidado ímpares. Cada cenário, personagem, cada roupa e cada arma usada contam, pelo seu próprio design, uma história. As armas, aliás, merecem uma menção honrosa: as keyblades, espécie de espada mágica em forma de chave usada pelos protagonistas, são muitas e maravilhosas. Ligadas a mundos e personagens, elas refletem, em cada detalhe, toda a história do seu “dono”, seus maiores poderes e mesmo seu “alinhamento”, já que o jogo possui muitas “ordens” e “famílias”. O esmero nesses detalhes — que muitas vezes sequer são descobertos ou usados pelo jogador — é tanto e tão efetivo, que faz pensar porque igual cuidado não foi dedicado ao gampelay ou ao polimento e conexão entre os vários fragmentos da linha do tempo narrativa.

Oblivion e Oathkeeper, duas importantes keyblades. Desde o pingente até a ponta da arma, cada detalhe tem um significado. Nesse exemplo, enquanto a ponta da Oblivion tem a forma do ideograma japonês para “escuridão” (), a da Oathkeeper traz o ideograma para “luz” ()

A forma como os personagens são desenhados também chama atenção: Sora, Riku e Kairi, os protagonistas, vão crescendo e mudando suas roupas e paleta de cores ao longo da série, sempre de forma atraente e interessante. Os vilões também entram nessa dinâmica e estão sempre cercados de escuridão e mistério, quando não marcados por um emblema que assusta tanto quanto impressiona. E é claro que o estilo japonês se faz presente: cabelos arrepiados, olhos grandes e gritos de invocação mágica se misturam harmoniosamente com Ariel, Peter Pan e Malévola, que mantêm seus traços originais.

As roupas merecem outro destaque: a obsessão por cintos, zíperes, fivelas e golas gigantes se transpõem para todo o universo de Kingdom Hearts das mais diversas formas.

Desde a capa preta usada por alguns vilões — cuja simplicidade e imponência empatam com a beleza dos cordões metálicos gravados com motivos em forma do emblema utilizado por estes personagens — até a roupa de batalha de Mickey, Donald e Pateta: nada escapa dos detalhes precisos e rebuscados que dão a cara do jogo a qualquer de seus frames. Um bom exemplo? A roupa de personagens divididos entre a luz e as trevas ser sempre uma combinação de preto e branco. Um detalhe simples, para alguns imperceptível, mas que traduz visualmente o que a narrativa vai contar apenas muito depois.

Quantos cintos você consegue contar na roupa de Sora?

Por fim, os cenários, que mudam a cada mundo, seguindo a estética da franquia Disney que representam, são a cereja do bolo: haverá aventuras em preto e branco e com traços simples, como no clássico “Steamboat Willie”, haverá campos inteiros que parecem feitos de pano, massinha e papel, como em “O estranho mundo de Jack”, e haverá ambientes extremamente realistas, reproduzindo fielmente a fisionomia dos atores de “Piratas do Caribe”. Isso sem contar os inúmeros momentos em que os personagens trocam de roupa ou até “de corpo” para se adequar ao mundo em questão, sem perder suas características, acessórios e traços distintivos. A alegria de poder explorar e interagir com universos que até então eram apenas contemplativos é um privilégio que só Kingdom Hearts poderia trazer e que, provavelmente, é um dos maiores trunfos e delícias da série.

5) Aproveite a jornada!

Imagino que, se você leu até aqui, provavelmente é um jogador potencial ou atual da franquia. Afinal, esse texto não é pequeno e por mais de uma vez você deve ter encontrado detalhes com os quais discordava ou que apenas não lhe interessavam. Mas se apesar deles você encontrou na vontade de saber mais sobre o jogo uma motivação para seguir até o fim, é porque você tem o que é preciso para enfrentar Kingdom Hearts.

Vá em frente: jogue as coletâneas (faça-o na ordem cronológica, não de lançamento), converse com seus amigos, emocione-se e divirta-se.

Com todos os seus defeitos e virtudes, Kingdom Hearts tem uma legião de fãs — eu entre eles! — que mal pode esperar pela próxima aventura e para lutar outra vez ao lado de Sora, Riku, Kairi, Mickey, Donald e Pateta. Mais do que (ou apesar de) um video game, a série é um fenômeno da cultura pop que, ao atravessar 16 anos com relevância, se torna parte exatamente daquilo que homenageia: a memória afetiva de cada um de nós.

--

--

Dimas T. de Lorena Filho

Game Designer. Fiction is as real as reality has fictions. Based in Cologne, Germany.